Auto do Boi: representatividade numa poesia azul marcada por lutas
O Auto do Boi de Parintins é a representação da história que dá origem ao Boi-Bumbá Caprichoso. Representativo, significativo e identitário. É o momento cênico da criação que reúne pessoas de diferentes credos, raças e etnias para celebrar e criar a maior manifestação cultural do Norte do Brasil. É nele que se encontram personagens distintos como os negros Pai Francisco, Mãe Catirina, Gazumbá, o pajé do povo indígena, a figura branca do amo do boi e da sinhazinha da fazenda.
Para este importante momento na arena, o Boi Caprichoso traz um Auto do Boi genuinamente representativo, no seu mais fiel significado social. A Mãe Catirina do Caprichoso, Ádria Barbosa, é uma mulher negra. O Pai Francisco azul, Fábio Modesto, é negro. O Gazumbá, Kelyson Castro é quilombola. São mais que personagens, são pessoas que trazem uma história de lutas e resistências reais. No Caprichoso, a encenação do Auto do Boi ganha vida e representatividade.
Antigamente, o Auto do Boi era um momento de pouco destaque nas apresentações dos bumbás e os personagens eram tratados com teor cômico e secundário. Pai Francisco e Mãe Catirina perderam o status de item e não concorrem diretamente na festa. Mas, o Caprichoso entende a importância cultural e social que o Auto do Boi tem para o Festival de Parintins e para a própria cultura do seu povo. “A maioria das referências que se tem são de homens que reproduziam os personagens e sempre vivido de forma muito caricata e, principalmente, retratando o negro de um modo pejorativo e a gente percebe que muitas crianças, muitas pessoas, muitos jovens, não se identificavam com a Catirina, com o Pai Francisco e o auto do Boi foi caindo praticamente em desuso e os personagens foram sumindo”, conta o Pai Francisco Fábio Modesto.
A jovem Ádria Barbosa revolucionou a personagem Mãe Catirina. A mulher que desejou a língua do boi e que antes era encenada por um homem, agora é vivido realmente por uma mulher. Uma iniciativa do Boi Caprichoso para dar voz e vez às pessoas. “O Caprichoso traz esse resgate de valorização dando a cada personagem o seu devido lugar, o seu devido reconhecimento, o seu protagonismo e é muito emocionante a gente falar isso. A gente se sentir nesse lugar de pertencimento que o boi Caprichoso, não só dentro da arena, não só nas três noites do Festival Folclórico, nos coloca”, revela a Catirina.
Ádria não só brinca de boi, não só se veste de Catirina para dançar. Conhecida por seus discursos críticos, Ádria passou a usar a Catirina como um lugar de fala, uma voz que brada por respeito, reconhecimento e valorização do negro como pessoa importante, não só no Auto do Boi, mas na própria sociedade. Um discurso compartilhado com o boi Caprichoso. “O ano inteiro o Caprichoso levanta essa bandeira de respeito, de valorização. A gente está de punhos erguidos nos trezentos e sessenta e cinco dias do ano. Eu tenho orgulho de ser Caprichoso. Tenho orgulho da representatividade do personagem dentro do festival”, destaca emocionada.
Nascido em família quilombola, que morava na comunidade do Matupiri (Barreirinha-Am), Kelyson Castro é o jovem quilombola que terá a honra de viver Gazumba, outro personagem de origem africana que está no Auto do Boi. Assim como Ádria e Fábio, Kelyson não apenas representa, ele é o próprio personagem, porque seu sangue faz parte da história. “Estou muito feliz por fazer parte dessa brincadeira que nos traz felicidade, que valoriza nossas raízes. Fico muito feliz pelo Caprichoso valorizar as raízes afro”, parabenizou o jovem de 28 anos.
A história do Auto do Boi
Mãe Catirina, negra grávida, fica com desejo de comer a língua do boi mais querido do seu amo. Para satisfazer a esposa, Pai Francisco mata o boi e provoca a irá do patrão e tristeza da sinhazinha da fazenda, filha do amo.
Na tentativa de reviver o boi, o amo chama o pajé da tribo da região para, com sua pajelança, ressuscitar o animal amado. Com danças e orações o indígena consegue trazer de volta o boi, porém, agora bumbá, de pano e de brinquedo, criando uma nova cultura.
Fotos: Pedro Coelho
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